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Aprendi a lidar com as dores de outras mulheres. Resta-me aprender a lidar com as minhas

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Laura Achiles Nunes
9/9/2024
às
7:00

Sexta-feira, 03:00, 6 de setembro de 2024. Inquieta, abro o aplicativo do jornal Folha de São Paulo e me dirijo rapidamente às Colunas e Blogs- um hábito que adquiri pelas manhãs. O texto escolhido é de Suzana Herculano Houzel, bióloga e neurocientista, intitulado de “Se as lágrimas rolam, é porque o cérebro desistiu de controlar a situação”, publicado no dia anterior.

Precisei ler o texto desta querida – já a chamo assim, sem o mínimo de intimidade - para compreender o que se passava comigo neste momento e os acontecimentos motivadores de minha insônia. Foi assim que, como os outros dias dessas últimas semanas, que considero as mais intensas de toda minha carreira, socorro-me ao meu caderninho de escritas. Tive que criar um lugar seguro, para que eu pudesse ser acolhida em seus devaneios.

Compartilho com vocês um trecho do texto citado acima que me tocou e me possibilitou desaguar, frente a um turbilhão de sentimentos que pairam sobre mim agora.

“Talvez o ato de chorar até acalme fisicamente o corpo (há controvérsias). Mas o mais importante é o que vem de cima: quando há choro, é porque o córtex pré-frontal parou de tentar, se desarmou...e relaxou. Às vezes é a tristeza, às vezes é de felicidade, às vezes é de alívio. Às vezes é superação; às vezes é derrota. Mas, o que quer que fosse que seu cérebro estava carregando, acabou”.

Chorei. Era o que precisava. Sou vulnerável. Sou vulnerável ao presenciar todos os acontecimentos dos últimos dias. Lido com as dores de mulheres mães, que exigem que os pais de seus filhos apareçam para dizer um “oi” para seus filhos após longos dois meses de ausência sem justificativa e súplicas das crianças. Lido com as dores de mães que requerem apenas a colaboração financeira dos genitores, que em muitos casos não é o suficiente para custear a compra mensal do mercado. Não lido com as dores de mães aprisionadas no sistema penitenciário - difícil estar num lugar tão vulnerável – que são impedidas de conviver com seus filhos pequenos, embora exista possibilidade para que cumpram o regime de prisão domiciliar. Como reparar esta falha? Acredito que estas mulheres precisam de cuidado e atenção, para que possam ter seus direitos resguardados, APENAS isto. Apenas isto? Não é tão simples.

Em meio a tantas dores, em algum momento penso em desistir. Estou cansada de ter que exigir ou tentar demonstrar para os operadores, que fazem parte deste sistema, que mulheres, em atenção as mães, merecem um tratamento diferenciado. É preciso invocar uma lente, um olhar cauteloso, que chamamos de Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ de 2021, que para mim e muitos que atuam no enfrentamento à violência contra a mulher é o maior avanço que tivemos nos últimos anos em se tratando da visibilidade às violências que mulheres sofrem nos mais variados ramos do Direito.

Retomando ao choro, o precisei fazê-lo. Precisei permitir-me desmoronar. Foram dias duros, encarando a triste realidade de mulheres encarceradas, de vê-las expor suas vulnerabilidades, dores, amores e aflições. Não obstante, algo que não é surpresa, porém não esperado, é ter que encarar, nas palavras de minha cliente, como um pinscher raivoso, um represente do Ministério Público, que inicia suas falas misóginas - desprezando a perspectiva de gênero, uma sala, com exceção a ele, profissionais mulheres, advogadas, juíza e assessora- proferindo os seguintes dizeres: “-Olha só doutora- dirigindo-se à juíza- como o mundo está sendo dominado por mulheres, tenho medo disso”. A juíza, com elegância e não procurando abrir um debate (acredito) lhe respondeu: “Não precisa ter medo, Dr”.

Após a sequência de falas misóginas, que desprezaram a situação de violência patrimonial clara, cometida contra uma mulher e seus dois filhos (sendo que um deles é portador do espectro autista grau 3 e deficiência intelectual), entendi o medo dele, por mais que não encontre justificativa para tal. Deve ser desconfortável para ele, branco, homem, ver mulheres em lugares que antes pertenciam exclusivamente aos homens. Deve ser desconfortável ver mulheres assumindo posições na sociedade que não seja a de cuidado.

Desconfortável, não me contive em advertir o Ilustríssimo Representante do Ministério Público: “Eu acho que, o sistema de Justiça está precisando de uma capacitação para atualização de temas que norteiam as decisões que tratam sob o espectro da perspectiva de gênero”. Achei elegante minha fala, para não dizer de forma mais clara que o Ilustríssimo precisaria de uma reciclagem no tema. Minha cliente comemorou e entendeu a mensagem.

Foi cruel presenciar a fala de um representante dos interesses dos menores (que não os chamo assim, apenas refiro-me a crianças e/ou adolescentes) desprezar a condição de uma mãe, sobrecarregada com os cuidados de dois filhos, após longos dois anos de morosidade da justiça, ao qual o genitor após ameaças - que são comprovadas - pedindo a genitora que desistisse da ação proposta, e que se não o fizesse, iria pedir exoneração de seu cargo público para que ela não tivesse direito a um valor justo de verba alimentar. Então, não para nossa surpresa, pouco menos de uma semana para a audiência de instrução, é colacionado aos autos informação de que o genitor pediu exoneração de seu cargo público, decidiu dar impulso aos seus estudos em outra cidade, há mais de 800 km, abdicando de sua única fonte de renda e abandonando materialmente e afetivamente seus dois filhos.

Pesado, não é? Parece que para o representante do órgão que tutela os interesses dos menores, não. Em sua fala defende a escolha do genitor em priorizar a obtenção de um título acadêmico em: “Não podemos taxar este homem como um monstro e pai ruim, por tentar investir em seus estudos”. Não, Ilustríssimo, ele não é um monstro, é só mais um homem que utiliza da estrutura machista e misógina de nossa sociedade para violentar patrimonialmente a sua ex companheira e seus filhos. Por isto, insisto na capacitação com perspectiva de gênero para todos os setores da Justiça.

Recordo-me do que vivenciara no dia anterior e choro. Choro por desalento. Choro por, apesar de ter sido combativa, explicitando todas as violências daquele processo, não pude evitar de que minha cliente, uma mãe atípica, sofresse violência processual e institucional.

Após o choro, sinto-me aliviada. Era desespero. Era angústia. Não me pertence mais, preciso agir. São 3:49, preciso me aprontar, hoje será um dia com muitas tarefas importantes.  Eu disse sobre meu momento de fala para mulheres encarceradas, não? Pois bem, preciso contextuar a situação para que entendam.

Em 2018 tive o caso mais emblemático da minha carreira: uma mulher em prisão preventiva, com seu filho recém-nascido em seus braços (dedicarei um texto só para essa história, pois ela merece) e eu, recém parida, hiper sensível a tantas questões, consegui tirar esta mãe e seu bebê de uma cela e levei-as para casa. E porque contar dessa mulher? Em meio a minha fala, para mulheres, dentro do sistema carcerário, essa mesma mulher, que não a via desde 2018, levantou a mão e disse: “Dra, fiquei até fevereiro em prisão domiciliar graças a senhora, sem você ter pedido nada em troca por isto, para que eu pudesse cuidar dos meus filhos”.

Pude ver que ela esperava algo, me encarava com um olhar de quem suplica. Após minhas considerações, retirando-me da sala, ela me seguiu até a porta e me despedi com os dizeres: “M, volto sexta para te atender, e vou tentar te levar para casa de novo”. Ela consentiu com a cabeça, e de forma tímida, pude presenciar algumas lágrimas tímidas percorrerem sobre seu rosto.

São 4:59 e preciso deixar minhas dores de lado, por ora. Preciso levar M para casa.

Por: Laura Achiles Nunes

Professora, palestrante, advogada atuante em Direito de Família com perspectiva de gênero. Coordenadora da Comissão de Enfrentamento à Violência contra a mulher da Subseção da OAB/TL.

Instagram: @lauraachiles